Mais do que ferramenta de trabalho no rugby, o corpo de Raquel Kochhann conta sua história de vida. Ela carrega com orgulho diversas tatuagens de momentos especiais de sua trajetória, que teve um marco nos esportes em 2024, com a escolha para porta-bandeiras do Brasil nas Olimpíadas de Paris. 3g4h3p
Os Jogos, por exemplo, estão representados nos aros olímpicos formados por bolas de rugby que ela tem tatuados na perna direita desde o Rio 20216, junto com o gol em “H” de sua modalidade.
A frase “não está morto quem peleia”, marcada no tornozelo esquerdo, representa a conquista do Campeonato Brasileiro de 2014 pelo Charrua Rugby Clube, de Porto Alegre. No antebraço direito, pictogramas de diversos esportes que Raquel praticou durante a vida e também imagens de interior e cidade grande, contando o caminho da atleta de Pinhalzinho até São Paulo.
Próximo ao cotovelo direito, a tatuagem que representa a família: uma tribal com símbolos para sua mãe e pai, a união dos dois e os irmãos. Na parte superior do braço direito, uma representação da Índia Guerreira e o lema de seu clube: se a força me faltar no braço, na coragem me sustento.
Na panturrilha direita, uma homenagem para a irmã, que sempre a apoia, com a frase “enquanto eu existir você nunca estará sozinha” – a familiar tem uma tatuagem igual, no mesmo local. Raquel explica: “Ela é a parceria que está sempre comigo, por isso está na panturrilha, que é o nosso segundo coração”.
O esporte pulsa nas veias de Raquel Kochhann desde criança, assim como o sonho de vestir as cores verde e amarela. “Eu sempre tive o sonho de ser atleta, desde que eu era bem pequenininha, eu mal caminhava, e falava para minha mãe: ‘um dia eu vou estar lá representando a nossa seleção’”, relatou.
Raquel Kochhann é natural de Saudades, interior de Santa Catarina, mas cresceu na cidade de Pinhalzinho. Com 32 anos hoje, sempre viu no esporte a oportunidade de realizar o seu sonho. Até ser porta-bandeiras do Brasil em Paris, enfrentou e venceu uma lesão de ligamento cruzado anterior (LCA) e um câncer de mama.
Além do rugby, foram muitas as modalidades experimentadas: futebol, futsal, atletismo, basquete e tênis de mesa. Aos 15 anos, a catarinense se mudou para Caxias do Sul, na Serra Gaúcha, para dar seu primeiro o rumo ao futuro no esporte – ainda que não no rugby. Ela ou em uma seletiva para o futebol feminino do Juventude, mas, após o rebaixamento do clube, o futebol feminino foi encerrado para “cortar gastos”.
Estudiosa, Raquel optou por focar na faculdade de educação física buscando se tornar uma profissional de excelência para tentar representar o Brasil ainda que fosse fora de campos ou quadras. Com bolsa de 100% pelo ProUni, chegou a alcançar a láurea acadêmica, destaque recebido por alunos com média acima de 8.
O rugby apareceu em sua vida quando estava na faculdade, por meio de um convite de uma conhecida para ir a um primeiro treino. Raquel não conhecia a modalidade, mas resolveu dar uma chance para o novo: “Foi amor ao primeiro contato”. Uma “paixão” que a fez voltar a sonhar em ser uma atleta olímpica: “Falei, caraca, esse é meu esporte, é isso que eu quero praticar.”
A família de Raquel também não conhecia o rugby, se referindo a ele como “maluco” ou “de louco”. Quando tomou a decisão de voltar a acreditar em seu sonho, ela ouviu perguntas como deixaria tudo para trás por essa busca pelo incerto, mas nunca teve dúvidas. O apoio da mãe, sempre presente, também foi fundamental para que a escolha fosse feita: “Minha mãe não fazia ideia do que era rugby, mas ela sempre falou, ‘se é isso que te faz feliz, tu tem 100% do meu apoio’.”
Apegada à família, principalmente à mãe e à irmã mais nova, Raquel enfrentou a distância dos que mais ama durante toda a sua adolescência e vida adulta. De Santa Catarina para o Rio Grande do Sul e, de lá, para São Paulo. “No início foi bem difícil, eu chorei várias vezes. Eu falava, ‘mãe, eu vou voltar para casa’. Ela sempre me dizia, ‘se tu quiser voltar pra casa, tu sabe que a mãe tá de braços abertos, mas, pensa bem, tu realmente vai deixar de lutar pelo que tu tanto quis todo esse tempo?’. Ela sempre me deu forças”, contou.
A mudança para a capital paulista foi algo natural, já que é na cidade que treina a seleção brasileira permanente de rugby. Dividindo a moradia com outras atletas do time, Raquel brinca que elas estão “realmente sempre juntas”.
Em um total de 9 atletas no mesmo espaço, ela conta sobre a convivência com as companheiras: “Em nenhum momento, elas me deixaram sozinha. Assim como a gente não abandona ninguém dentro de campo, em momento nenhum, elas me abandonaram fora dele”.
A caminhada de Raquel nos Jogos Olímpicos começou no Brasil, em 2016, ou por Tóquio, em 2021, e, antes de chegar a Paris 2024, foi interrompida pela lesão e o diagnóstico de câncer. Com a carreira já estabilizada e vestindo as cores verde e amarelas, Raquel esbarrou em dois desafios em sequência. Primeiro, foi diagnosticada com uma lesão de LCA e, depois, descobriu um câncer na mama e no osso esterno.
O que pode parecer assustador, para a atleta foi uma oportunidade de voltar ainda mais forte para o esporte que ama. Raquel teve o apoio da família e das companheiras de equipe para superar o período de quase dois anos afastada dos gramados. “Eu sempre fiz parte do grupo, mesmo eu estando me recuperando do câncer, me recuperando da lesão de LCA, eu ainda assim estava ajudando o rugby brasileiro. Isso foi o que me deu energia”, relata.
A parte mental também foi essencial para que Raquel se preparasse para retornar aos gramados. Deixar a mente vazia nunca foi uma opção, e ela encontrou alternativas para se manter ativa dentro do rugby. “Eu sempre estava estudando jogadas, times adversários, ajudando as meninas a revisar o treino. Quando eu tinha o período das quimioterapias, eu levava meu videogame, caça-palavras, livro pra ler”, relembrou.
Raquel retornou para os gramados e logo já recuperou o alto nível, voltando a fazer parte das Yaras, a seleção feminina brasileira de rugby. Se juntando ao time com o ciclo olímpico já em vigor, a atleta recuperou seu espaço e garantiu a convocação para estar em Paris em 2024.
A alegria de representar o Brasil em sua terceira edição de Jogos Olímpicos já era grande, mas Raquel recebeu, também, o convite do Comitê Olímpico Brasileiro para ser porta-bandeira da delegação brasileira na cerimônia de abertura. A história da luta sempre com um sorriso no rosto chamou a atenção do COB, que elegeu, pela primeira vez, uma atleta de rugby para a honraria.
“Eu aproveitei cada segundo que eu ainda tinha na proa do barco, comemorando com a bandeira, mostrando pro mundo inteiro o que o Brasil é muito mais do que só o futebol, que os esportes olímpicos merecem também atenção, não só de quatro em quatro anos, mas durante todos os anos a gente luta muito pra conquistar nosso espaço”, relembrou.
O destaque da catarinense à frente do barco brasileiro acende holofotes para o rugby brasileiro. A visibilidade conquistada pela atleta fez com que muitas meninas procurassem saber mais sobre a modalidade, e Raquel, que já era um exemplo para as companheiras, ou a inspirar também as novas gerações com a sua história.
“É uma grande honra mostrar a força e o poder que nós mulheres temos. Mostrar que o rugby é um esporte que abraça todo mundo. Mesmo com um diagnóstico de câncer, não é uma sentença de morte. Esse processo tão duro, deixa a gente ainda mais forte para voltar a competir em alto nível”, diz.